.quando
uma cozinheira resolve costurar.
Em agosto de 2013 fiz a primeira promessa de ficar um ano sem comprar roupas e nove meses depois fracassei, tive que recomeçar. Foi transformador e vou te contar como foi.
[Aventais para a Tati do
Pata Lodge]
Algumas pessoas, inclusive amigos próximos, não sabem porque do nada eu comecei
a costurar, mas agora que passou quase dois anos decidi relatar pois a experiência foi positiva. Quem me
acompanha aqui no blog sabe que o conteúdo principal são receitas e deve
estar achando um pouco estranho este assunto. Mas sim, claro! É preciso olhar para todas as dimensões de nossas vidas,
não podemos nos limitar somente a origem e qualidade do que consumimos como
alimento, né? Não vou negar que o cultivo de alimentos agroecológicos pode levar o mundo em outra direção assim como a alimentação saudável pode transformar a vida de uma pessoa, mas é preciso abrir os olhos para o que as outras "indústrias" estão impactando em nossas vidas, e a moda é uma delas.
(Ganhei este livro da Ana que trabalha na Hedra e achei bem interessante, recomendo)
Você sabe qual a origem do material da calcinha que você esta usando? Quem será que fez o teu pijama?
Quando rompemos com
um padrão, neste caso comprar roupa, passamos a encarar a situação com outros olhos e, além do questionamento, abrimos espaço para o novo, para a criatividade, ou melhor, para expressar quem realmente somos.
Mas será que nossa essência pode virar roupa? Ou melhor, nossa roupa pode expressar nossa essência?
Pode ser que sim. Inconscientemente, mesmo sem pensar, nos vestimos conforme nossa emoções e situações. Tem dias que estamos nos sentindo leve, lindo, depressivo, relaxado e as vezes nada disso importa pois vestimos uniformes. E este é o caso de quem trabalha em cozinha profissional por exemplo.
Mas porque parar de comprar roupas? Ou melhor, porque voltar a costurar?
Boa
pergunta. Vale lembrar que sou uma pessoa que cresceu em uma cidade industrial onde grande parte da população gosta de ir ao
Shopping e costuma se vestir
semelhante as outras. Diferente de outros lugares onde os estilos são mais expressivos. Por isso sempre gostei de garimpar roupas em viagens e brechós de época, pois era o único jeito de encontrar peças acessíveis e originais.
{Sorocaba produzia um linho de excelente qualidade e foi até considerada a Manchester paulista devido seu histórico com a indústria têxtil e a estamparia. Curiosamente estive na Manchester inglesa em 2006 - para fazer um curso de cozinha vegetariana - e na ocasião conheci a cidade que, além da história com a indústria de tecido, tem museus, brechós incríveis e transpira vanguarda. Não que a grama do vizinho seja mais verde mas não vi nenhuma semelhança com a manchester paulista no que diz a originalidade visual e cuidado com o patrimônio histórico. Por aqui uma das fábricas virou shopping, outra virou empreendimento imobiliário e o que restou torcemos para que vire um museu de tecelagem.}
Começou a ficar difícil
encontrar boas opções pela região e as vendedoras tinham que ter paciência comigo. Sempre houve algo que me incomodava, as
vezes um tecido, um zíper, uma textura, o corte, o acabamento e principalmente o
estilo. Buscava algo que só agora descobri, estava guardado aqui dentro.
Tudo isso para não falar no que é os bastidores desta
industria. Como saber quem não explora? Hoje
existem tantos conceitos em volta de uma marca que fica
difícil identificar quem realmente realiza um processo que beneficie a todos de
maneira saudável dentro da cadeia produtiva.
Sempre
existiu uma vontade de costurar as próprias roupas mas nunca dei muito ouvidos pra isso, parecia impossível.
[O avental Roseira ficou com minha prima Paula]
Processos são fundamentais para compreender como as coisas funcionam e também para poder colocar em prática nossas idéias, nada brota nas prateleiras do nada.
É importante ter consciência
daquilo que consumimos. Ao comprar contribuímos para aquela cadeia continuar. Cada coisinha tem uma origem, uma composição, uma soma de manifestações.
Fashion Week - engraçado!
BBC - documentário "Dying for a bargain"
Homo
consumus, consumo logo existo
Foi
se um tempo, e não muito, algo como três gerações atrás onde quase toda mulher
sabia costurar e cozinhar pelo menos o básico. Tipo pregar um botão e fazer uma barra. Não estou julgando que seja bom ou ruim, apenas
lembrando que as pessoas estavam vivenciando mais os processos. Quem não costurava sempre tinha uma irmã, uma tia ou até uma vizinha que entendia. Mas de
repente tudo mudou. A indústria, baby, nos contagiou. O homo sapiens virou o homo
consumus e começou a consumir de tudo e mais um pouco.
Esta semana vi uma bota em uma vitrine que tinha um aspecto de "usado" pois deve estar na moda. Não é engraçado isto? Você comprar um objeto que parece que já foi usado mas na real tá na cara que não foi?
Mas e antes? Beeeeem antes. Como era feito para adquirir uma coisa que alguém não tinha? Fazia ou trocava. Eu tenho cacau e você tem limão, como é que faz? Feiras e trocas, sim Senhor.
{
Já troquei desde desenhos por aula de yoga até um aluguel em troca de levar um cachorro, o August, para passear todos os dias. Mas ainda sinto que existe resistência em trocar roupas, principalmente usadas. Concordo que precisamos doar também, mas e aquele vestido que você comprou e usou só uma vez e não consegue usar e nem doar? Bota para circular, plataformas como o enjoei e feiras de trocas são bons meios de começar.
Nunca esqueço do bazar que fizemos
no Rosinha lá em Águas de São Pedro, algumas peças eram tão boas que fizemos
até um leilão, foi muito engraçado. Altas trocas com a Helô, Valentine, Ju e Ana. No primeiro bazar de troca da Morada troquei uma pintura por um brinco de pedra da Lua e no segundo um vestido lindo por cartas de tarô. Mês passado troquei blusas com minha amiga Maria.}
Foi
entre estas e outras questões que optei por fazer esta promessa de ficar 1 ano
sem comprar roupas. Ora bolas, a quantidade de roupas que tenho é o suficiente
para viver e eu ainda posso trocar, doar e costurar. Tem coisa mais legal? Sim tem, pois costurar exige tempo, paciência, máquina de costura, tecidos, linhas e se você não curtir o processo o resultado não vai ser legal e a vida lá fora será mais interessante. O processo é valioso e no inicio parece impossível.
O primeiro sintoma
A
parte boa é que por conta da promessa voltei a encarar a costura com mais
afinco e com uma máquina Vigorelli antiga, presenteada por minha mãe, e uma
Singer, presenteada pelo namorado, comecei fazendo bolsas e saias com tecidos
de roupas velhas. Aprendi a costurar basicamente vendo vídeos pela internet. O molde eu já tinha uma base pois em 2007 havia feito um curso de modelagem e
moulage, mas ficou faltando a parte da costura.
Quando peguei o jeito na máquina comecei a costurar algumas saias godês para vender. Gosto de saia pois foi uma das primeiras peças de vestuário, homens e mulheres usavam em tempos antigos. Pronto,
nasceu Rita Maria. Um surto que ainda reverbera e este foi meu primeiro sintoma.
Assumindo o fracasso
Em
dezembro de 2013 adquiri 2 peças que minha razão achou que tudo bem pois não
tinha saída:
1.
Uma calça jeans - estava sem e não
tinha maquinário para produzir.
2.
Um sutiã - precisei de um da mesma cor de um figurino de flamenco e eu não tinha a mínima noção por onde começar a costurar um sutiã.
Mas
o pior foi em abril de 2014, após 9 meses de caminhada, quando rompi a promessa
durante uma viagem a Portugal. Comprei algumas peças de inverno pois fazia um frio de
quebrar os ossos e foi o suficiente para me frustrar. Inconformada comigo mesma
zerei e um mês depois comecei de novo. E foi aí, nestas semanas de intervalo, que comprei 3 vestidos. Foi uma espécie de descontrole, me senti com falsa liberdade, foi estranho. Você já viu um filme chamado Surplus? É do Erik Gandini, me ajudou a abrir um pouco os olhos na adolescência.
A
verdadeira promessa – 1 ano sem comprar roupa –
maio
2014, marco zero.
Na
primeira semana de maio de 2014 zerei e comecei a promessa novamente, agora
incluindo bolsas e restringindo a não comprar nenhuma peça, mesmo que
necessário. E Hoje 1 ano e um mês depois, consegui. Quando olho para trás muita
coisa mudou, até uma camisa para o namorado consegui fazer. Foi muito difícil, fazer um jantar para 20 pessoas é muito mais fácil.
Desta
vez não participei do festival de dança onde faço ballet pois as
academias padronizam o figurino e você não pode fazer o seu. Já na escola de
flamenco acabei fazendo a loucura de produzir o figurino da minha turma
inteira, 9 meninas, cada uma com um figurino diferente – e não contei para
ninguém da promessa!!!!! O ano anterior já me incomodou o fato de comprarmos
uma roupa pronta, afinal o figurino é tão importante dentro do contexto gitano que não consigo compreender porque as escolas de flamenco fazem isso. E, desta vez, ou eu fazia ou não dançava. Insisti com as
meninas em criar um figurino ao invés de comprar pronto e elas super toparam. Foi quando busquei ajuda de uma professora de costura, a Gi.
O tema do festival foi uma homenagem a orquestra
Casino de Sevilla e para
incrementar o figurino aprendi a fazer crochê
e confeccionei, em viscose, dois mantos com franja, um pra mim e outro para a Juliana que foi quem trouxe esta idéia. No inicio pensei ser incapaz de fazer
tudo aquilo, e sim tive problemas durante o caminho, normal. Uma das garotas não gostou, uma emagreceu muito e outra ficou grávida. Consegui contornar todas as situações mas após as apresentações me desliguei da escola. Senti uma certa frustração, pois na realidade gostaria de estar em um local onde cada dançarina confeccionasse o próprio vestido, afinal cada uma é uma.
Rita
Maria – o nascimento da marca.
Comecei a ser convidada para participar de alguns bazares com a Rita Maria que, além de saias, agora
produz aventais, granolas, bolsas de retalhos e outras peças sazonais e
artesanais. O primeiro foi o bazar do MACS (Museu de Arte Contemporânea de Sorocaba), depois veio o Ocupação Jovem, Mundo Mix em SP, na loja My Mobb e as edições do Bazar do Bar.
[bazar na Mymobb de Sorocaba]
Além
da costura acabei descobrindo o crochê, bordado e outras técnicas como o
tingimento com índigo vegetal.
Tingir é tipo cozinhar as roupas, mas é uma coisa bem mais sistemática do que preparar uma refeição.
O aprendizado com o índigo é recente e me trouxe reflexões mais profundas a respeito dos pigmentos de origem natural. O indigo merece um post só pra ele, mas
aqui você já pode conferir algum resultado.
São muitas coisas para aprender e desenvolver neste universo do vestuário. É como a cozinha, quanto mais praticamos mais descobrimos, é infinito.
[Avental com serigrafia artesanal para a Fer, do
Alimentar Verde, usar em suas
bodas culinárias]
É tudo simples e artesanal mas o processo tem sido cada vez mais interessante. Não consegui variar muito as peças pois a costura disputa o tempo com a cozinha, mas aos poucos ela esta invadindo. Pode ser que quem entende de moda ache tudo muito básico, mas a idéia é realmente esta. Uma peça simples, bonita e que funcione em um determinado estilo de vida. Acho que o avental-vestido é perfeito, você fica linda e já esta com sua roupa de "trabalho".
[Avental Volpi que foi para a Marcela do
Dona Violeta]
O
detox
Quando deixei de comprar roupas observei
alguns sintomas curiosos mas que com o tempo foi evoluindo em um sentido maior
de consciência.
[ilustra para coleção de camisetas Rita Maria para Ashtanga Yoga Floripa]
O primeiro estágio, a abstinência, foi quando senti o impulso de entrar em uma loja. Entrei para ver mas ao
identificar que não poderia comprar veio uma estranha sensação, não sei
descrever, talvez seja a abstinência.
O segundo estágio foi sentir o impulso de querer ver mas após entrar na
loja já dava vontade de sair.
O terceiro estágio foi ver uma vitrine e sentir vontade de entrar na loja, mas
logo em seguida o impulso perdia força e eu nem entrava.
No quarto estágio eu já não olhava e nem sentia vontade de ver e comprar
nenhuma roupa.
E, finalmente, o quinto estágio, o inesperado, foi quando começaram a me procurar para
desenhar e criar peças.
[Crop Medita Flores para
Ashtanga Yoga Floripa, fiz somente o desenho e modelagem, quem fechou a peça foi uma malharia]
Hoje vivo o sexto estágio, onde consigo identificar modelagens e acabamentos, observo ,
analiso e sinto que consigo absorver algo para mais tarde somar. Após desenvolver um pouco a prática da costura agora estou buscando trabalhar com tecidos orgânicos, que são mais caros e beeeeeem mais difíceis de achar. Para pessoas que compram poucos metros é muito difícil encontrar tecidos orgânicos e acessíveis, mas estamos indo em passo de tartaruga.
Não sei se vou ter a glória de experienciar o sétimo estágio, o que será? Tecer um tecido?
Malasana – a
costura e o yoga
Parte do bem-estar que a costura me trouxe,
além de proporcionar a sensação de realização, feminilidade, criatividade,
raciocínio 3D e outras tem como
brinde os benefícios da postura Malasana
do yoga ou a popular “cócoras”.
Este é o asana perfeito para ficar trabalhando no
chão enquanto desenha molde ou corta tecido. Observe que as crianças usam esta
postura direto para brincar e que, sem saber, alonga os tornozelos,
panturrilhas, tendões, relaxa a região lombar, os órgãos inferiores e aumenta a concentração.
Quem conhece costureiras sabe que é uma
profissão que judia muito da coluna pois elas passam muito tempo sentadas. Mas
na verdade quando você vivencia todo o processo este assana pode trazer
benefícios ao invés de prejudicar.
A consciência de
vestir
I – Somos livres para vestir e não precisamos seguir uma moda que esta sempre mudando.
II - A moda deixa as pessoas iguais. Quanto
mais na moda e descolado você for, mais sem personalidade você é,
visualmente falando.
III - A moda detox é mais uma moda, porém interessante. Os
antenados da moda já falam em descarte, fibras naturais, pigmentos botânicos e os brechós entram ainda mais na
moda. Rs.
IV - A moda desvaloriza quem faz e valoriza
quem “cria”, mas o cenário esta se modificando, Graças a Dios. Em outras palavras a
costureira, assim como a cozinheira, são desvalorizadas. Ao contrário do
estilista e do chef de cozinha.
V - São raros os que desenham e também
modelam e costuram. Por isso é importante valorizar os alfaiates e sapateiros artesanais de sua cidade.
VI
- Slow Fashion é interessante. A moda se inspirou na cozinha com o Slowfood (e o detox) e hoje busca um resgate e a valorização de peças únicas e atemporais.
VII – Estar fora de moda e costurar as próprias roupas são maneiras de descobrir o
próprio estilo.
VIII – Se você não pode fazer valorize quem
faz.
IX – Desconfie das roupas assim como você
desconfia de um milho, procure saber a origem.
X – Glamour é um lixo e a simplicidade é um
luxo.
XI- O lixo é um luxo. – Reutilizar matéria-prima é super.
No próximo post prometo que coloco receita ;)
[Mandioquinha no ateliê]